50 milhões de processos

Este é o número de ações trabalhistas no Brasil. Veja as principais pendengas entre empresas e trabalhadores

Por Maurício Oliveira

Já se foi o tempo em que os confrontos trabalhistas se limitavam à cobrança em juízo de horas extras ou dos chamados "direitos assegurados", como o aviso prévio indenizado, a multa de 40% sobre o saldo de FGTS, o pagamento de férias e 13o salário. Novas polêmicas têm chegado aos tribunais de todo o país, suscitando decisões que dependem da interpretação dada pelos juízes à legislação, que mais de seis décadas após o surgimento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) soa quase como pré-histórica.

O aumento da demanda desde então é impressionante. Em 1941, 17 000 ações trabalhistas foram registradas no Brasil. Em 2003, o número subiu para 1, 7 milhão. Dessas, 44,2% foram resolvidas por conciliação e as demais seguiram sem solução. Em julho de 2004, a justiça trabalhista ultrapassou a marca histórica de 50 milhões de ações, das quais cerca de 2,5 milhões continuam em trâmite.

No final de 2003, o governo federal criou o Fórum Nacional do Trabalho, reunindo representantes do capital e do trabalho, para discutir mudanças na legislação que reduzissem os conflitos e, assim, desafogassem a justiça trabalhista. Depois de um ano, o Ministério do Trabalho e Emprego encaminhou à Casa Civil uma Proposta de Emenda Constitucional e o Anteprojeto de Lei da Reforma Sindical, que deverão ser enviados ao Congresso Nacional ao longo deste ano. No entanto, as alterações propostas, tanto em artigos da Constituição Federal quanto da CLT, se referem só aos direitos coletivos, como a organização sindical e o direito de greve.

São mudanças que deixam de fora os novos aspectos da relação entre patrões e empregados, como processos que pleiteiam indenização por danos morais, conhecidos também como assédio moral. São constrangimentos como a perseguição sistemática de funcionários ou a imposição de tarefas ridículas para vendedores que não alcançam as metas. As empresas alegam que julgar danos morais não seria tarefa da justiça trabalhista, mas a resposta tem sido firme no sentido contrário -- todas as pendengas entre patrões e empregados, não importa a natureza, são da alçada dos tribunais do trabalho.

Saiba a seguir mais sobre o entendimento dado às principais "zonas de conflito" entre patrões e empregados, com casos julgados ao longo de 2004 pelos tribunais regionais ou pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST).

Justa Causa
Advogados que trabalham para grandes corporações sugerem que essa modalidade de demissão seja reservada a casos extremos, tal a polêmica em torno dela. "Embora a justa causa esteja definida em lei, o texto dá margem a muitas interpretações", diz Osvaldo Sirota Rotbande, presidente da Associação Brasileira dos Advogados Trabalhistas.

O artigo 482 da CLT prevê justa causa para ato de improbidade, mau procedimento, negociação por conta própria que constitua concorrência à empresa, condenação criminal, desídia no desempenho das funções. Prevê também nos casos de embriaguez habitual, violação de segredo da empresa, ato de indisciplina ou de insubordinação, abandono de emprego, ato lesivo da honra contra superiores, prática constante de jogos de azar e atos atentatórios à segurança nacional.

Quase todas as situações poderiam ser enquadradas nessa extensa lista, mas é cada vez maior o número de contestações de demissão por justa causa que são acolhidas no TST. Com a reversão, os demitidos passam a ter direito às verbas rescisórias eliminadas pelo enquadramento na modalidade, como a liberação do fundo de garantia, a multa de 40% sobre o saldo do FGTS e o pagamento de férias proporcionais.

Decidir se a causa foi mesmo justa não é tarefa fácil. Um exemplo é o caso do motorista de caminhão do Paraná demitido por dizer ao chefe numa discussão que ele não era "homem de verdade". A justa causa foi confirmada em primeira instância, revogada pelo Tribunal Regional do Trabalho (que considerou a punição desproporcional à ofensa e levou em conta os bons precedentes do funcionário). E de novo confirmada pelo TST, com base no item "ato lesivo da honra praticado contra superiores", artigo 482 da CLT.

E-mails
Uma das polêmicas em relação à demissão por justa causa é a possibilidade de baseá-la no uso inadequado da internet e dos e-mails corporativos. A discussão se dá em torno do direito da empresa de acessar o conteúdo dos computadores usados pelos funcionários. "É cada vez maior o entendimento de que o e-mail corporativo não pode ser violado sob a alegação de que o equipamento pertence à empresa", diz José Carlos de Araújo Almeida Filho, presidente do Instituto Brasileiro de Direito Eletrônico (IBDE).

Muitas corporações estão incluindo no código interno de procedimentos um aviso sobre a possibilidade de vigilância do conteúdo dos computadores. Ainda assim, para evitar problemas posteriores na justiça trabalhista, as empresas estão optando, em geral, por demissões sem justa causa ao detectar uso inadequado desse sistema.

Em julho do ano passado, o gerente de marketing de uma multinacional farmacêutica, em São Paulo, foi surpreendido pela demissão. Descobriu, extra-oficialmente, que o motivo eram os comentários sobre a empresa que ele fazia em uma lista de discussão com ex-colegas da universidade. "Fiquei sem saber se a empresa estava me vigiando ou se alguém da lista havia me dedurado", diz o rapaz, de 28 anos. Ao conversar com um amigo da área de informática, no entanto, descobriu que a empresa aplicava um filtro para selecionar e-mails com palavras tidas como suspeitas. "Meus comentários sobre a empresa foram banais, mas não tive como contestar a demissão porque não foi por justa causa e não tenho prova de que meus e-mails foram vigiados", diz ele. Dois meses após, conseguiu emprego, mas, ao ser questionado sobre a demissão, preferiu não citar a questão do e-mail.

Alcoolismo
A interpretação que se dá hoje ao tema pelos tribunais do trabalho é claramente oposta à prevista na CLT, já que nas últimas décadas o alcoolismo deixou de ser considerado um mero desvio de conduta e foi catalogado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença que precisa de tratamento.

Em maio do ano passado, um ex-funcionário do Banco de Brasília (BSB) ganhou uma disputa do gênero no TST. Ele havia sido demitido por justa causa em 1997, depois de sete anos em que o alcoolismo o levou a mais de dez internações em clínicas especializadas, sem sucesso. Ele abandonava o tratamento ou cometia algum ato que o fazia ser expulso das instituições. O banco decidiu demiti-lo após uma série de faltas sem justificativa, mas o TST considerou que, caso quisesse desligá-lo, o banco deveria ter recorrido à modalidade sem justa causa, por uma questão sobretudo de "caridade".

"Grampos" como prova
Quem planeja gravar uma conversa do chefe ou do subordinado para apresentar a fita em juízo para ratificar uma demissão por justa causa ou uma indenização por danos morais pode desistir desde já. Essa não é considerada uma prova lícita, como descobriu uma ex-funcionária de uma pequena farmácia de Lages, Santa Catarina. Com dificuldades para conseguir um novo emprego, ela desconfiou que o ex-patrão não estava dando boas referências a seu respeito. Teve então a idéia de pedir a um amigo que telefonasse para o dono da farmácia, identificando-se como representante de uma agência de empregos interessado em informações sobre ela. O que o ex-patrão disse não foi realmente agradável, mas nem por isso a fita foi levada em conta pelos tribunais.

Ordem abusiva
Resistir ao cumprimento de uma ordem visivelmente abusiva não é motivo para demissão por justa causa. Foi o que entendeu o TST diante do caso de um funcionário de um laboratório do Rio de Janeiro que se recusou a transitar a pé, na madrugada, em uma região perigosa, para entregar o resultado de um exame. Foi acusado de insubordinação e demitido. Na análise do episódio, os juízes levaram em conta o fato de a entrega não ser emergencial -- tratava-se de um teste de icterícia, doença comum entre bebês, de tratamento simples.

Plantão pelo celular
Levar o celular da empresa para casa e ficar disponível para uma emergência dá direito a receber horas extras? O TST decidiu que não, revertendo uma decisão que no âmbito estadual havia sido contrária à Centrais Elétricas do Espírito Santo. O funcionário alegava que levar o celular provocava restrição de deslocamento nas folgas, já que o impedia de ir a locais onde o sinal do aparelho não era captado.

Como demitir a empresa
O que muita gente não sabe é que a CLT prevê também a justa causa "ao contrário": o funcionário pode pedir demissão e pleitear todos os benefícios aos quais teria direito caso tivesse sido demitido. Ele pode agir dessa forma quando a empresa exige serviços superiores às suas forças, contrários aos bons costumes ou alheios ao contrato. Pode também exigir quando for tratado com rigor excessivo e quando as condições previstas pelo contrato não forem cumpridas pelo empregador -- como o pagamento do salário em dia, por exemplo. Para dar início a esse procedimento, chamado oficialmente de "rescisão indireta", deve-se procurar a Delegacia Regional do Trabalho.

Discriminação contra obesos
Em 1998, um ex-funcionário processou a Transbrasil -- que não opera mais -- por ter se sentido coagido a participar do programa de combate à obesidade da companhia aérea (chamado internamente de "Free Willy"). O ex-funcionário alegou preconceito contra obesos, mas o TRT de São Paulo considerou que o combate à obesidade não é ato discriminatório -- ao contrário, ajudava a evitar problemas de saúde. O ex-funcionário pode ainda recorrer ao TST.

Castigos ridículos
O TST deu ganho de causa a um ex-funcionário da Indústria de Bebidas Antarctica em Natal, Rio Grande do Norte, que era submetido pelo chefe a tarefas constrangedoras, como fazer flexões ou correr dentro das dependências da empresa, cada vez que não alcançava as metas. A sentença lembrou que o chefe deveria estimular os funcionários a melhorar a produção "adotando as modernas técnicas de administração de pessoal, jamais o retorno aos métodos da pré-história".

Falta de solidariedade
O McDonald's foi condenado pelo Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (ainda cabe recurso, portanto) a indenizar um ex-funcionário em 50 000 reais por danos morais. Curiosamente, a atitude ofensiva não partiu de um representante da rede de lanchonetes, mas de um cliente que cuspiu no rosto do funcionário diante da recusa em aceitar cheque de terceiros. Como o funcionário estava apenas seguindo uma política adotada pela empresa, o McDonald's foi acusado de omissão por não ter tomado providências legais contra o cliente. "Não se afigura correta a conduta de deixar o trabalhador à própria sorte, quando agredido no ambiente de trabalho em razão da eficiência na prestação dos serviços ao empregador", justificou a juíza Maria Doralice Novaes.

Uma história de asséido moral
Depois de 15 anos trabalhando na biblioteca de uma grande escola privada de São Paulo, Ana Elizabeth Cavalcanti, percebeu no final de 2003 que as mudanças na direção iriam afetá-la. A nova responsável pelo departamento pessoal deixou claro desde o início que não contaria mais com o trabalho de Ana Elizabeth. Só que, em vez de demiti-la , submeteu a funcionária a quatro meses de expectativa e humilhações. Depois, foi demitida.

Embora tenha recebido os direitos trabalhistas, Ana Elizabeth não aceitou a forma como o processo foi conduzido. Prestou uma queixa de assédio moral na Delegacia Regional do Trabalho (DRT). Na audiência, três meses depois, não obteve a retratação esperada. Levou o processo adiante e pleiteia indenização de15 salários mínimos, um para cada ano trabalhado.

Para o advogado de Ana Elizabeth, Felipe Pagani Diniz, do Stuber Advogados Associados, a empresa que age de forma arbitrária ao demitir um funcionário está sendo no mínimo imprudente. "Muitas vezes a reclamação na Justiça é motivada pela forma como o processo se deu e não pela decisão de demissão em si", diz Diniz.